segunda-feira, 22 de outubro de 2012

"A manhã do mundo" na recensão da Profª Maria Pires

 "Nada pior de imaginar. Não um 11 de setembro, mas dois. Ou antes, um vivido duas vezes, num mundo onde a probabilidade das realidades paralelas não é descartada. Porém, a “fúria mediática despreza a substância das coisas, perverte o raciocínio com nuvens de demagogia e emite delírios sem notícias dentro”. Por estas e muitas outras razões é que os media foram tão insensíveis a alguns contornos do terror perpetrado aquando do atentado às Torres do WTC em NY. O preconceito, religioso ou cultural, faminto do sangue “limpo” e “sem pecado” dos outros, ofendeu-se e procurou colocar na sombra do entusiasmo jornalístico imagens inusitadas e inesperadas. “Um homem de meia-idade mergulhava do alto da Torre Norte. A sua posição era de rara graciosidade, de cabeça para baixo mas com o corpo muito direito e umas das pernas ligeiramente flectida. A sensação de serenidade absoluta, naquele contexto, perturbava quase tanto como o acto em si (…)”. Mas nem isso amoleceu os corações dos sempre bravos porque sem oportunidades de bravura. Houve mesmo quem, com um malévolo desdém, perguntasse: “Não achas que é demasiado fácil desistir?”
Naturalmente, era mais fácil abarcar o horror “natural”, isento de escolha, porque inevitável, para poder verdadeiramente suportá-lo e viabilizar condignamente o heroísmo imaculado do que viria a seguir. “O homem é feliz assim, sente-se vivo em contraponto: diz-me como foi mau para ti para eu sentir como é bom para mim”. Embora neste caso surjam dúvidas. Talvez neste nosso quintalejo seja mais “diz-me como foi mau para ti para eu te provar como foi pior para mim”. Porque mesmo na desgraça, queremos ser superiores. Sobretudo se isso não implicar esforço nosso, mas antes a labuta ou a dor alheias. São os “egos dos outros que devoram os nossos, porque a “natureza humana é complexa, e as mais das vezes dissimulada”.
Presos neste drama bisado, os protagonistas são acompanhados até ao fim, qualquer que ele seja. Com a coragem de uma filmagem em direto, sem direito a “fotoshop”. E no meio da grande tragédia, os pequenos ou os grandes problemas mais quotidianos não foram esquecidos, não se sobrepondo, contudo, a esse evento transfigurado na personagem “A manhã do mundo”.Todos eles batizados sem inocência nem descuido, como espelhos do que pretendem simbolizar. E nesta trama apreciamos ainda o facto de serem os amores maduros os únicos que pareciam contrariar as indiferenças e os excessos, como acontecia com Millard e Tzufit e com Solomon e Ida. Aquele aprendeu, confrontado com a morte “que o adeus deve ser dito em todas as oportunidades que a vida nos dá. (…) As vozes da solidão haviam sido esmagadoras, mas nunca apareceriam se estivessem lá os dois, a presença física entrelaçada com o sentimento, a devoção microscopia de um lugar.”
De resto, “está o mundo cheio de admiração pela mera visibilidade. Está, pois, cheio de vazio.” Mas, felizmente, a ortodoxia não é obrigatória. É o caso de Teresa. “Teresa é feliz, na acepção de felicidade que irrita os frívolos. (…) É feliz porque tem livros na mesinha de cabeceira, e é com os livros que consegue chegar àquele limiar de felicidade de quem compra apenas porque sim.” É feliz porque ter livros porque sim é sintoma de escolha de liberdade. Mas é uma felicidade que exige coragem, virtude e força. “A força de não deixar que os parasitas se instalem como lhes apetece.”
Entretanto, “a multidão esquece rapidamente e não quer ser incomodada com os grandes princípios.” A multidão exige a perfeição, melhor dizendo, a sua aparência. Mas Darius sabia muito bem a diferença, por isso afirmava: “nunca fiz questão de viver uma relação perfeita com uma mulher perfeita num mundo perfeito. Isso é perigoso e asfixiante.” Mas, no entanto, a depressão da mulher, essa, não a enfrentou firmemente. Se tivesse sabido, talvez fosse diferente. É difícil amar os deprimidos, é difícil reconhecer o direito à loucura, mesmo quando esta se explica pelo abuso e pela violência. É difícil perceber que estes seres recusem tratar-se, tal a vontade de atingir apenas a ”normalidade”. Darius não entendia, mas conhecia os sintomas: “O mar recua, recua, como se preparasse uma onda gigante para nos engolir. Sei logo que parou. Pelo clima de calma doentia a pairar e pela raiva que aparece misturada na espuma.” Como conviver com esta realidade tão exigente de generosidade, generosidade difícil, porque arredada da paixão e, sobretudo, da simpatia? Mas Ayda prova que a loucura, afinal, nada mais é do que desorientação e ausência de horizonte. Consciente de viver uma segunda oportunidade no grande desastre, “assume a liderança sem qualquer dificuldade. (…) O domínio dos factos, a imprevisibilidade do tempo, estão a dar-lhe corpo, espírito e bússola.” Encontrou o norte na dádiva, na concessão de uma segunda hipótese aos que decidiram a sua solidão. Ela, em absoluto, não carecia desse presente. E foi a si própria que impôs a ausência de escolha.
    E temos ainda Alice. A Alice cansada do rótulo que tão cedo lhe impuseram, a Alice que queria ser apenas igual e procura no insucesso a via para a inclusão. “A sua inteligência, contudo, e a falta de coragem para o suicídio, não lhe permitiram a derrota absoluta. Foi mulher fácil para alguns homens para testar os seus próprios limites. (..) De seguida, simplificou-se. Não tinha sentido continuar a procurar os empregos  que ninguém queria com o único e exclusivo fito de se humilhar e reduzir o pó da existência, ao osso da vida, ao lugar onde todo o charme é supérfluo. Tinha reparado que, assumindo o desvalor e a indignidade, a raiva ganhava arestas e convocava o desvalor e a autocomiseração.” Por isso, perante o absurdo de um sofrimento sem remédio, “não vai esperar por mais dor nem ver os outros degradarem-se à sua volta. Não vai ter a morte que não escolheu. (…) Nada se sobrepõe à liberdade. Aqui há espaço. Aqui não há medo. A morte, quando ronda, assusta, é verdade, substitui o coração por um bloco de chumbo e torna o nosso mundo mais pequeno
Mas aqui não há medo.” Foi efetivamente o grande salto para a liberdade, a mais sagradas das escolhas. A de decidir. Mais do que isso, a liberdade de decidir na míngua de alternativas. Como Mark, que, da primeira vez, por fim tomou consciência de que estava feliz. “Feliz porque ia deixar de sofrer e de ver os outros sofrer.(…)
A morte é certa, e no entanto
Culpa-se quem morre por escolher quando.”
    A segunda oportunidade, redimiu-o, esqueceu os pequenos orgulhos e olhou os outros como gente. E assumiu responsabilidades e compromissos consigo próprio. Soubéssemos todos sermos capazes de nos humanizarmos num segundo ensejo. Há, então, questões que devem ser colocadas sobre a mesa. O que mudou? “Somos o que somos ou somos a circunstância de nós próprios? Somos o que não somos ou somos a circunstância dos outros?”  Respondam os que não sabem, mas que sempre ensinam.
    No final, “nos corações já sentem buracos e talvez os psicólogos e psiquiatras que o governo lhes vai disponibilizar os ajudem a fazer isso: a encher os buracos dos corações com o que sobrar do pensamento.(…)A morte tem tamanho, sobrepõe-se  a quase tudo, e a opção é deixar o medo enlouquecer-nos ou, em alternativa (…) dizer a essa senhora imensa que nos deve deixar em paz na escolha do último trilho.(…)
Contar é vencer, calar é perder. Perder-nos.”
    Com o ignorar, o alhear-se ou o distanciar-se é a mesma coisa. Porque o mundo continuou a girar e nos seus múltiplos cantos, mais longe ou mais perto dos acontecimentos narrados, os pequenos ou os grandes problemas continuaram o centro das nossas angústias.
    “A manhã do mundo” é afinal um grito de revolta (na realidade, de muitas revoltas) contra todos os que apontaram o dedo aos que escolheram a sua morte, livremente, incapazes do esforço básico de simplesmente se colocarem no lugar do outro, no voluntário desconhecimento dos contextos em que saltar abriu o caminho para a liberdade e para o alívio. Na realidade, um alerta para um dos múltiplos horrores do atentado às torres do WTC de 11 de Setembro de 2001, que os fazedores de notícias quiseram fazer esquecer. E um aviso. Talvez dois. Não julgues se desconheces. E aprende que serás sempre julgado pela ignorância. Por isso, se puderes decidir em liberdade e consciência, “salta”

Maria Pires
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