"Nada pior de imaginar. Não um 11 de setembro, mas dois. Ou antes, um vivido duas vezes, num mundo onde a probabilidade das realidades paralelas não é descartada. Porém, a “fúria mediática despreza a substância das coisas, perverte o raciocínio com nuvens de demagogia e emite delírios sem notícias dentro”. Por estas e muitas outras razões é que os media foram tão insensíveis a alguns contornos do terror perpetrado aquando do atentado às Torres do WTC em NY. O preconceito, religioso ou cultural, faminto do sangue “limpo” e “sem pecado” dos outros, ofendeu-se e procurou colocar na sombra do entusiasmo jornalístico imagens inusitadas e inesperadas. “Um homem de meia-idade mergulhava do alto da Torre Norte. A sua posição era de rara graciosidade, de cabeça para baixo mas com o corpo muito direito e umas das pernas ligeiramente flectida. A sensação de serenidade absoluta, naquele contexto, perturbava quase tanto como o acto em si (…)”. Mas nem isso amoleceu os corações dos sempre bravos porque sem oportunidades de bravura. Houve mesmo quem, com um malévolo desdém, perguntasse: “Não achas que é demasiado fácil desistir?”
Naturalmente, era mais fácil abarcar o horror “natural”, isento de escolha, porque inevitável, para poder verdadeiramente suportá-lo e viabilizar condignamente o heroísmo imaculado do que viria a seguir. “O homem é feliz assim, sente-se vivo em contraponto: diz-me como foi mau para ti para eu sentir como é bom para mim”. Embora neste caso surjam dúvidas. Talvez neste nosso quintalejo seja mais “diz-me como foi mau para ti para eu te provar como foi pior para mim”. Porque mesmo na desgraça, queremos ser superiores. Sobretudo se isso não implicar esforço nosso, mas antes a labuta ou a dor alheias. São os “egos dos outros que devoram os nossos, porque a “natureza humana é complexa, e as mais das vezes dissimulada”.
Presos neste drama bisado, os protagonistas são acompanhados até ao fim, qualquer que ele seja. Com a coragem de uma filmagem em direto, sem direito a “fotoshop”. E no meio da grande tragédia, os pequenos ou os grandes problemas mais quotidianos não foram esquecidos, não se sobrepondo, contudo, a esse evento transfigurado na personagem “A manhã do mundo”.Todos eles batizados sem inocência nem descuido, como espelhos do que pretendem simbolizar. E nesta trama apreciamos ainda o facto de serem os amores maduros os únicos que pareciam contrariar as indiferenças e os excessos, como acontecia com Millard e Tzufit e com Solomon e Ida. Aquele aprendeu, confrontado com a morte “que o adeus deve ser dito em todas as oportunidades que a vida nos dá. (…) As vozes da solidão haviam sido esmagadoras, mas nunca apareceriam se estivessem lá os dois, a presença física entrelaçada com o sentimento, a devoção microscopia de um lugar.”
De resto, “está o mundo cheio de admiração pela mera visibilidade. Está, pois, cheio de vazio.” Mas, felizmente, a ortodoxia não é obrigatória. É o caso de Teresa. “Teresa é feliz, na acepção de felicidade que irrita os frívolos. (…) É feliz porque tem livros na mesinha de cabeceira, e é com os livros que consegue chegar àquele limiar de felicidade de quem compra apenas porque sim.” É feliz porque ter livros porque sim é sintoma de escolha de liberdade. Mas é uma felicidade que exige coragem, virtude e força. “A força de não deixar que os parasitas se instalem como lhes apetece.”
Entretanto, “a multidão esquece rapidamente e não quer ser incomodada com os grandes princípios.” A multidão exige a perfeição, melhor dizendo, a sua aparência. Mas Darius sabia muito bem a diferença, por isso afirmava: “nunca fiz questão de viver uma relação perfeita com uma mulher perfeita num mundo perfeito. Isso é perigoso e asfixiante.” Mas, no entanto, a depressão da mulher, essa, não a enfrentou firmemente. Se tivesse sabido, talvez fosse diferente. É difícil amar os deprimidos, é difícil reconhecer o direito à loucura, mesmo quando esta se explica pelo abuso e pela violência. É difícil perceber que estes seres recusem tratar-se, tal a vontade de atingir apenas a ”normalidade”. Darius não entendia, mas conhecia os sintomas: “O mar recua, recua, como se preparasse uma onda gigante para nos engolir. Sei logo que parou. Pelo clima de calma doentia a pairar e pela raiva que aparece misturada na espuma.” Como conviver com esta realidade tão exigente de generosidade, generosidade difícil, porque arredada da paixão e, sobretudo, da simpatia? Mas Ayda prova que a loucura, afinal, nada mais é do que desorientação e ausência de horizonte. Consciente de viver uma segunda oportunidade no grande desastre, “assume a liderança sem qualquer dificuldade. (…) O domínio dos factos, a imprevisibilidade do tempo, estão a dar-lhe corpo, espírito e bússola.” Encontrou o norte na dádiva, na concessão de uma segunda hipótese aos que decidiram a sua solidão. Ela, em absoluto, não carecia desse presente. E foi a si própria que impôs a ausência de escolha.
E temos ainda Alice. A Alice cansada do rótulo que tão cedo lhe impuseram, a Alice que queria ser apenas igual e procura no insucesso a via para a inclusão. “A sua inteligência, contudo, e a falta de coragem para o suicídio, não lhe permitiram a derrota absoluta. Foi mulher fácil para alguns homens para testar os seus próprios limites. (..) De seguida, simplificou-se. Não tinha sentido continuar a procurar os empregos que ninguém queria com o único e exclusivo fito de se humilhar e reduzir o pó da existência, ao osso da vida, ao lugar onde todo o charme é supérfluo. Tinha reparado que, assumindo o desvalor e a indignidade, a raiva ganhava arestas e convocava o desvalor e a autocomiseração.” Por isso, perante o absurdo de um sofrimento sem remédio, “não vai esperar por mais dor nem ver os outros degradarem-se à sua volta. Não vai ter a morte que não escolheu. (…) Nada se sobrepõe à liberdade. Aqui há espaço. Aqui não há medo. A morte, quando ronda, assusta, é verdade, substitui o coração por um bloco de chumbo e torna o nosso mundo mais pequeno
Mas aqui não há medo.” Foi efetivamente o grande salto para a liberdade, a mais sagradas das escolhas. A de decidir. Mais do que isso, a liberdade de decidir na míngua de alternativas. Como Mark, que, da primeira vez, por fim tomou consciência de que estava feliz. “Feliz porque ia deixar de sofrer e de ver os outros sofrer.(…)
A morte é certa, e no entanto
Culpa-se quem morre por escolher quando.”
A segunda oportunidade, redimiu-o, esqueceu os pequenos orgulhos e olhou os outros como gente. E assumiu responsabilidades e compromissos consigo próprio. Soubéssemos todos sermos capazes de nos humanizarmos num segundo ensejo. Há, então, questões que devem ser colocadas sobre a mesa. O que mudou? “Somos o que somos ou somos a circunstância de nós próprios? Somos o que não somos ou somos a circunstância dos outros?” Respondam os que não sabem, mas que sempre ensinam.
No final, “nos corações já sentem buracos e talvez os psicólogos e psiquiatras que o governo lhes vai disponibilizar os ajudem a fazer isso: a encher os buracos dos corações com o que sobrar do pensamento.(…)A morte tem tamanho, sobrepõe-se a quase tudo, e a opção é deixar o medo enlouquecer-nos ou, em alternativa (…) dizer a essa senhora imensa que nos deve deixar em paz na escolha do último trilho.(…)
Contar é vencer, calar é perder. Perder-nos.”
Com o ignorar, o alhear-se ou o distanciar-se é a mesma coisa. Porque o mundo continuou a girar e nos seus múltiplos cantos, mais longe ou mais perto dos acontecimentos narrados, os pequenos ou os grandes problemas continuaram o centro das nossas angústias.
“A manhã do mundo” é afinal um grito de revolta (na realidade, de muitas revoltas) contra todos os que apontaram o dedo aos que escolheram a sua morte, livremente, incapazes do esforço básico de simplesmente se colocarem no lugar do outro, no voluntário desconhecimento dos contextos em que saltar abriu o caminho para a liberdade e para o alívio. Na realidade, um alerta para um dos múltiplos horrores do atentado às torres do WTC de 11 de Setembro de 2001, que os fazedores de notícias quiseram fazer esquecer. E um aviso. Talvez dois. Não julgues se desconheces. E aprende que serás sempre julgado pela ignorância. Por isso, se puderes decidir em liberdade e consciência, “salta”
Naturalmente, era mais fácil abarcar o horror “natural”, isento de escolha, porque inevitável, para poder verdadeiramente suportá-lo e viabilizar condignamente o heroísmo imaculado do que viria a seguir. “O homem é feliz assim, sente-se vivo em contraponto: diz-me como foi mau para ti para eu sentir como é bom para mim”. Embora neste caso surjam dúvidas. Talvez neste nosso quintalejo seja mais “diz-me como foi mau para ti para eu te provar como foi pior para mim”. Porque mesmo na desgraça, queremos ser superiores. Sobretudo se isso não implicar esforço nosso, mas antes a labuta ou a dor alheias. São os “egos dos outros que devoram os nossos, porque a “natureza humana é complexa, e as mais das vezes dissimulada”.
Presos neste drama bisado, os protagonistas são acompanhados até ao fim, qualquer que ele seja. Com a coragem de uma filmagem em direto, sem direito a “fotoshop”. E no meio da grande tragédia, os pequenos ou os grandes problemas mais quotidianos não foram esquecidos, não se sobrepondo, contudo, a esse evento transfigurado na personagem “A manhã do mundo”.Todos eles batizados sem inocência nem descuido, como espelhos do que pretendem simbolizar. E nesta trama apreciamos ainda o facto de serem os amores maduros os únicos que pareciam contrariar as indiferenças e os excessos, como acontecia com Millard e Tzufit e com Solomon e Ida. Aquele aprendeu, confrontado com a morte “que o adeus deve ser dito em todas as oportunidades que a vida nos dá. (…) As vozes da solidão haviam sido esmagadoras, mas nunca apareceriam se estivessem lá os dois, a presença física entrelaçada com o sentimento, a devoção microscopia de um lugar.”
De resto, “está o mundo cheio de admiração pela mera visibilidade. Está, pois, cheio de vazio.” Mas, felizmente, a ortodoxia não é obrigatória. É o caso de Teresa. “Teresa é feliz, na acepção de felicidade que irrita os frívolos. (…) É feliz porque tem livros na mesinha de cabeceira, e é com os livros que consegue chegar àquele limiar de felicidade de quem compra apenas porque sim.” É feliz porque ter livros porque sim é sintoma de escolha de liberdade. Mas é uma felicidade que exige coragem, virtude e força. “A força de não deixar que os parasitas se instalem como lhes apetece.”
Entretanto, “a multidão esquece rapidamente e não quer ser incomodada com os grandes princípios.” A multidão exige a perfeição, melhor dizendo, a sua aparência. Mas Darius sabia muito bem a diferença, por isso afirmava: “nunca fiz questão de viver uma relação perfeita com uma mulher perfeita num mundo perfeito. Isso é perigoso e asfixiante.” Mas, no entanto, a depressão da mulher, essa, não a enfrentou firmemente. Se tivesse sabido, talvez fosse diferente. É difícil amar os deprimidos, é difícil reconhecer o direito à loucura, mesmo quando esta se explica pelo abuso e pela violência. É difícil perceber que estes seres recusem tratar-se, tal a vontade de atingir apenas a ”normalidade”. Darius não entendia, mas conhecia os sintomas: “O mar recua, recua, como se preparasse uma onda gigante para nos engolir. Sei logo que parou. Pelo clima de calma doentia a pairar e pela raiva que aparece misturada na espuma.” Como conviver com esta realidade tão exigente de generosidade, generosidade difícil, porque arredada da paixão e, sobretudo, da simpatia? Mas Ayda prova que a loucura, afinal, nada mais é do que desorientação e ausência de horizonte. Consciente de viver uma segunda oportunidade no grande desastre, “assume a liderança sem qualquer dificuldade. (…) O domínio dos factos, a imprevisibilidade do tempo, estão a dar-lhe corpo, espírito e bússola.” Encontrou o norte na dádiva, na concessão de uma segunda hipótese aos que decidiram a sua solidão. Ela, em absoluto, não carecia desse presente. E foi a si própria que impôs a ausência de escolha.
E temos ainda Alice. A Alice cansada do rótulo que tão cedo lhe impuseram, a Alice que queria ser apenas igual e procura no insucesso a via para a inclusão. “A sua inteligência, contudo, e a falta de coragem para o suicídio, não lhe permitiram a derrota absoluta. Foi mulher fácil para alguns homens para testar os seus próprios limites. (..) De seguida, simplificou-se. Não tinha sentido continuar a procurar os empregos que ninguém queria com o único e exclusivo fito de se humilhar e reduzir o pó da existência, ao osso da vida, ao lugar onde todo o charme é supérfluo. Tinha reparado que, assumindo o desvalor e a indignidade, a raiva ganhava arestas e convocava o desvalor e a autocomiseração.” Por isso, perante o absurdo de um sofrimento sem remédio, “não vai esperar por mais dor nem ver os outros degradarem-se à sua volta. Não vai ter a morte que não escolheu. (…) Nada se sobrepõe à liberdade. Aqui há espaço. Aqui não há medo. A morte, quando ronda, assusta, é verdade, substitui o coração por um bloco de chumbo e torna o nosso mundo mais pequeno
Mas aqui não há medo.” Foi efetivamente o grande salto para a liberdade, a mais sagradas das escolhas. A de decidir. Mais do que isso, a liberdade de decidir na míngua de alternativas. Como Mark, que, da primeira vez, por fim tomou consciência de que estava feliz. “Feliz porque ia deixar de sofrer e de ver os outros sofrer.(…)
A morte é certa, e no entanto
Culpa-se quem morre por escolher quando.”
A segunda oportunidade, redimiu-o, esqueceu os pequenos orgulhos e olhou os outros como gente. E assumiu responsabilidades e compromissos consigo próprio. Soubéssemos todos sermos capazes de nos humanizarmos num segundo ensejo. Há, então, questões que devem ser colocadas sobre a mesa. O que mudou? “Somos o que somos ou somos a circunstância de nós próprios? Somos o que não somos ou somos a circunstância dos outros?” Respondam os que não sabem, mas que sempre ensinam.
No final, “nos corações já sentem buracos e talvez os psicólogos e psiquiatras que o governo lhes vai disponibilizar os ajudem a fazer isso: a encher os buracos dos corações com o que sobrar do pensamento.(…)A morte tem tamanho, sobrepõe-se a quase tudo, e a opção é deixar o medo enlouquecer-nos ou, em alternativa (…) dizer a essa senhora imensa que nos deve deixar em paz na escolha do último trilho.(…)
Contar é vencer, calar é perder. Perder-nos.”
Com o ignorar, o alhear-se ou o distanciar-se é a mesma coisa. Porque o mundo continuou a girar e nos seus múltiplos cantos, mais longe ou mais perto dos acontecimentos narrados, os pequenos ou os grandes problemas continuaram o centro das nossas angústias.
“A manhã do mundo” é afinal um grito de revolta (na realidade, de muitas revoltas) contra todos os que apontaram o dedo aos que escolheram a sua morte, livremente, incapazes do esforço básico de simplesmente se colocarem no lugar do outro, no voluntário desconhecimento dos contextos em que saltar abriu o caminho para a liberdade e para o alívio. Na realidade, um alerta para um dos múltiplos horrores do atentado às torres do WTC de 11 de Setembro de 2001, que os fazedores de notícias quiseram fazer esquecer. E um aviso. Talvez dois. Não julgues se desconheces. E aprende que serás sempre julgado pela ignorância. Por isso, se puderes decidir em liberdade e consciência, “salta”
Maria Pires
fonte da foto